Chorava todo mundo, mas agora ninguém chora mais. Pelo menos por um dia, na comunidade do Calabetão, uma das mais violentas da região metropolitana de Salvador, preocupar-se com os próprios problemas poderia ser secundário. Para a sorte de todos que estavam nas cercanias do campo do Calabetão, o último domingo de setembro (25), era de sol forte. Para quem jogaria as finais da edição 2011 da Copa Vivo de Futebol Interbairros no campo de terra, um alívio; para quem apenas iria passar a manhã por lá, festa.
Teaser da Copa Vivo, realizado pela Nova Produções
As finais do torneio masculino e feminino aconteciam na comunidade de forma um tanto inesperada, já que nenhuma das equipes envolvidas na decisão, seja no feminino ou no masculino, eram dali. No masculino, tanto ADBTN, de Tancredo Neves, quanto Barris, eram de bairros distantes, enquanto no feminino, se o Grêmio vinha de Lauro de Freitas, ao menos o 100% Mata Escura era de um bairro relativamente próximo. A escolha do campo do Calabetão chegou a ser contestada, devido aos índices de violência da região.
Daniel Conceição, diretor do Grêmio, reconhece que as jogadoras ficaram receosas com o local da partida. Milton Rodrigues, presidente da Federação Estadual de Futebol Amador da Bahia (Fefa), em reunião com a Vivo, patrocinadora da competição, sublinhou a necessidade de policiamento. No entanto, qualquer um que entrasse no Calabetão, através da rua Afeganistão, e visse crianças andando a cavalo e jogando futebol em outros campos, notaria que a final havia pacificado a comunidade, ao menos por um curto período. Naquele 25 de setembro, o Calabetão mais parecia uma pequena cidade do interior, com grande movimento na mercearia e nos bares, onde as pessoas compravam refrigerantes para o almoço ou não regulavam na cervejinha dominical. O campo de São Cristóvão, que chegou a ser cotado para a decisão, foi vetado pela Fefa porque nas semifinais, houve confusão e ameaças entre a equipe local e o time da ADBTN. Milton Rodrigues disse à Vivo que a final só poderia ser no bairro próximo ao Aeroporto caso a empresa de telefonia se responsabilizasse pela segurança, garantisse o policiamento e assumisse qualquer problema. “Futebol é demais, rapaz. Mexe com os brios da pessoa, dentro de campo você tá a mil por hora e às vezes, depois do jogo, fora do campo, fica tudo bem. Até beija”, brinca o presidente.
Grêmio de Lauro de Freitas e ADBTN eram francas favoritas para o título. As duas equipes haviam sido campeãs do primeiro turno da competição, disputado no primeiro semestre, e uma simples vitória evitaria a disputa de uma finalíssima, que seria disputada no final de semana seguinte. No primeiro jogo da manhã, sob o forte sol das 11 horas, as meninas do Grêmio não deram chance ao 100% Mata Escura, o que irritava a técnica Denize, que esbravejava fora – e às vezes dentro – do campo. Fabio Leon, técnico do Grêmio, estava tranquilo. Suas meninas estavam bem organizadas taticamente e dominavam o time adversário.
Leon já poderia sorrir mesmo sem o título: ao longo da Copa Vivo havia feito uma aposta certeira. Ele transformou a volante Índia em meia-atacante e colheu os louros pela aposta. Índia havia se tornado uma das principais responsáveis pela ótima campanha gremista e, com 9 gols, foi a artilheira da competição. O reposicionamento de Índia não havia causado problemas para a volância. A vaidosa Ana Flávia, tatuada e cheia de brincos (estes, apenas quando não está jogando), dava conta do recado e não desgrudava da camisa 10 de Mata Escura. Ainda marcou um gol na final, assim como a artilheira Índia. No segundo tempo, enquanto Rai Valente, eleita melhor goleira da competição, garantia a vitória do Grêmio, o gol da reserva Sueline decidia o jogo, que acabaria com 3 a 1 no placar.
Logo após um intervalo de cerca de meia hora, ADBTN e Barris entraram em campo para a final masculina. O time de Tancredo Neves, que também reunia jogadores de comunidades como Arenoso e Beiru, pertencentes a Tancredo Neves, já estava animado desde o momento em que se preparava no andar superior do vestiário anexo ao campo do Calabetão. O vestiário parecia antigo e mal cuidado, com sua pintura descascada e paredes à mostra, mas quem ligava para isso? Do segundo andar, a visão do campo era privilegiada, ponto final.
Dentro do vestiário, os jogadores da ADBTN conversavam alto e gargalhavam bastante. Junto ao grupo estava um homem idêntico ao pagodeiro Mário Brasil, vocalista da banda O Troco, que ficou famosa pela polêmica criada pela música “Todo Enfiado” e que, hoje, luta contra o projeto da deputada estadual Luiza Maia (PT), que visa acabar com o financiamento público a shows de bandas que, de acordo com ela, tenham músicas que difamem as mulheres. Sentada durante boa parte do tempo próxima à organização da Vivo, a vereadora petista Vânia Galvão, que também defende o projeto de Luiza Maia e está iniciando um trabalho de incentivo ao esporte amador, curiosamente não esboçava reação ao pagodão que tocava nas caixas de som do bar atrás do campo. O cover de Mário Brasil assistiu à partida inteira a centímetros da linha lateral, onde, ao alto e bom som do mesmo pagode, puxava coreografias rapidamente assimiladas por parte do público.
Antes de começar o jogo, Mário Brasil, com um copinho de plástico, repleto de cerveja, ajudava a aquecer o goleiro de Tancredo Neves, juntamente com alguns jogadores, que chutavam bolas para o goleiro entrar no clima do jogo. A equipe laranja dos Barris optou por uma preparação motivacional-religiosa, e fez um círculo no qual o capitão puxava palavras de ordem. A partida acabou sendo mais equilibrada que a final feminina e não aconteceram gols na primeira etapa. A ADBTN era melhor e obrigava o goleiro Daniel a fazer defesas corajosas, muitas vezes saindo nos pés dos atacantes adversários e deslizando no barro amarelado para evitar um desastre.
Daniel, que usava a camisa 16, talvez não soubesse que seguia a tradição francesa. No país europeu não é como no Brasil, onde os goleiros utilizam, normalmente, as camisas 1, 12 e 22: lá, usa-se a 16 no lugar da 12. A 16, inclusive, traz algumas más lembranças para os brasileiros, já que foi utilizada por Fabien Barthez na final da Copa de 1998, quando Zinédine Zidane destruiu a seleção canarinho e o arqueiro francês parou Ronaldo, Rivaldo e Bebeto. Talvez o goleiro também não soubesse, mas tinha admiradores atrás do gol. Do meu lado, dois garotinhos da comunidade vibravam com suas defesas e, após o apito final, um deles chamou o outro para irem para trás do outro gol para continuarem vendo de perto as proezas do goleiro.
Na ADBTN, o camisa 8, Bita, de 26 anos, também emulava um estilo europeu de futebol. Jogava à italiana, dominando o meio-campo como Andrea Pirlo, um autêntico regista – ou, em bom português, maestro ou comandante. Posicionado quase sempre atrás dos outros meias e com movimentos mais lentos, mas precisos, Bita esbanjava categoria com passes açucarados, que culminavam em jogadas perigosas, sempre com os atacantes Leandro e Jean. No segundo tempo, Reinan, conhecido como Pelezinho, jovem de 16 anos que já faz parte das divisões de base do Bahia, também aproveitou seus passes. A pressão só aumentou e logo a ADBTN chegou ao gol, no início do segundo tempo, com o atacante Jean.
Dali em diante, o time recuou um pouco e permitiu que o escrete dos Barris tomasse o controle do jogo. Fazendo um trabalho sujo como poucos, o zagueiro e capitão Igor começou a aparecer como um dos destaques do jogo, assim como o goleiro Alex, autor de grandes defesas. E olha que a sorte ainda ajudou: faltando menos de 10 minutos para o fim da peleja, o camisa 9 dos Barris não honrou seu número de goleador e, com o arqueiro já batido, cabeceou uma bola no travessão. A bola bateu no solo e não cruzou a risca da meta da ADBTN antes de ser afastada. Não era necessário qualquer chip na pelota para dirimir as dúvidas. A marca da pancada da bola no chão de terra era clara demais para que qualquer polêmica fosse iniciada, como no futebol profissional, com seus gramados, milhares de câmeras de tevê e tira-teimas. O lance foi suficiente para que a ADBTN acordasse e mantivesse a posse de bola durante a maior parte do tempo no campo de ataque até o apito final. A partir daí, só se ouvia gritos de “Uh, é Arenoso!”. A torcida da ADBTN, que havia enchido dois ônibus fretados até o Calabetão, havia invadido o campo para comemorar junto com os jogadores.
Mesmo os que perderam não se lamentavam. Antes e depois da premiação para os times e para os melhores jogadores do torneio, todo mundo já havia caído no pagode, na cerveja ou nos dois ao mesmo tempo. Quem estava de fora, já festejava antes mesmo de a partida acabar. O campo era de todos, algo completamente diferente de qualquer nível do futebol profissional, onde os gramados são protegidos de tantos pés estranhos e sem chuteiras apropriadas. O campo não era dos jogadores. Era também dos técnicos, que o invadiam às vezes, e também dos meninos que entraram no intervalo para brincar de bater pênaltis aos amigos. Do “clone” de Mário Brasil, de familiares dos jogadores e jogadoras e dos torcedores, que podiam comemorar junto com eles quando um gol era marcado, sem qualquer empecilho colocado pela arbitragem. Prevalecia o bom senso: bastava não demorar muito dentro de campo comemorando.
É justamente na comunhão que a beleza do esporte amador reside. Ao contrário do futebol profissional, quem está dentro de campo não parece ostentar uma superioridade perante os deuses. Ninguém é intocável – literalmente. Aqueles homens e mulheres estão mais para deuses ou semi-deuses gregos, que mantém contato direto com seus súditos de alguma forma. Mesmo na hora do gols e das vitórias, quando estão no Olimpo, compartilham sua divindade com os outros: podem ser abraçados e beijados por amigos e amigas, namorados e namoradas, maridos e esposas, que invadem o campo sem a menor cerimônia para reverenciar aqueles que, ao menos naquele momento, são seus herois. Por outro lado, as críticas são mais mordazes. Quantas vezes não já ouvimos de algum torcedor que “eu jogo melhor que esse cara” ou que “esse gol até eu faria!”? No futebol amador, às vezes pode até ser verdade. Ali não estão os melhores do mundo. Mas, nos campos de terra de cada bairro de Salvador e do mundo estão, certamente, os mais humanos.