O caldeirão argentino de “La Boca del río”

O caldeirão argentino de “La Boca del río”

05 ago, 2014 - Por

Na década de 1990, o clássico entre Argentinos e Boca Juniors transformava uma simples partida de futebol em um espetáculo de lazer e diversão que mobilizava milhares de torcedores e mudava a rotina de toda uma sociedade, que trocava a tranquilidade natural pelo clima de festa aos domingos.

Engana-se, no entanto, quem acredita que o cenário descrito acima se passava na histórica cidade de Buenos Aires, capital da Argentina. O palco deste espetáculo futebolístico é, na verdade, no tradicional bairro da Boca do Rio, em Salvador. Isso mesmo, na Boca do Rio! Argentinos e Boca Juniors protagonizaram grandes jogos de futebol amador no Campo da Liga, o maior do bairro, na década de 1990, e chegava a atrair cerca de 2 mil pessoas aos domingos.

Os nomes das duas equipes foram inspirados nas equipes argentinas citadas anteriormente. O Argentino (sim, sem a letra “s”) foi fundado em 1984, quando o quase homônimo argentino ocupava posição de destaque, sendo campeão nacional neste ano e na temporada seguinte, quando venceu também a Libertadores da América, principal competição de clubes da América Latina. Já o Boca Juniors foi fundado em 1993, também com inspiração do xará argentino e em uma brincadeira com o nome do bairro, e encerrou as atividades no início da década de 2000. O Argentino, por sua vez, ainda mantém suas atividades e comemorou, inclusive, 30 anos de existência no dia 4 de abril deste ano.

O grande clássico da Boca do Rio durou menos de dez anos de intensas disputas, mas conseguiu reunir inúmeras histórias e partidas épicas que ficam marcadas até hoje na memória de quem vivenciou aquele período. Os fundadores de Argentinos e Boca Juniors, Mário Santos Silva e José Santana, respectivamente, não escondem a emoção ao falarem das disputadas partidas dominicais.

Marão Gordo (Foto: Leonardo Pastor)

Marão Gordo (Foto: Leonardo Pastor)

Anos dourados

Tudo começou na década de 1970, quando o futebol amador passou a ser disputado de maneira mais organizada na Boca do Rio. “Os jogadores começaram a se organizar e a formar times, mesmo que estes times ainda não tivessem nomes. Havia uma necessidade desta organização e a criação de um campeonato no bairro”, explica Mário Silva, que é popularmente conhecido como Marão Gordo.

Com essa necessidade de organização, os clubes começaram a ser fundados. O primeiro deles foi o Real Brasil, que surgiu em meados da década de 1970. Em 1984, Marão fundou o Argentinos e, neste mesmo ano, criou também a Liga Desportiva da Boca do Rio, que hoje conta com 40 times associados e funciona como uma espécie de federação dos clubes. Junto com a liga, foi criado o Campeonato de Futebol Amador da Boca do Rio, disputado ano a ano desde então.

Com a criação da liga e do campeonato, explica Marão, os clubes se fortaleceram e outros começaram a surgir. “Aquela foi realmente uma época de ouro para todos nós. Os jogos eram muito disputados, toda a comunidade da Boca do Rio se mobilizava, assistia aos jogos. Aos domingos, as partidas do campeonato eram a principal atividade de lazer da população”, conta ele.

Zé Coió (Foto: Leonardo Pastor)

Zé Coió (Foto: Leonardo Pastor)

Em meio a esse momento de “efervescência”, surgiu o Boca Juniors. “Eu tinha um bar na Boca do Rio e costumava jogar com alguns amigos meus que frequentavam o local. Decidimos, então, criar um time para disputar o campeonato”, relata José Santana, que ganhou fama no bairro com a alcunha de Zé Coió.

Ele chegou a disputar o Campeonato Baiano profissional pelo Galícia e teve rápida passagem pelo Vitória. “Modéstia à parte, eu era goleador. Meu negócio era jogar pra dar show, para levantar a torcida. Fiz mais de 200 gols”, conta, orgulhoso.

Com o surgimento do Boca, a rivalidade começava. “O primeiro jogo foi pegado, duro. Terminou 1 a 1. Já no nosso primeiro ano no campeonato, chegamos às semifinais. Nosso início foi promissor, mas as temporadas seguintes seriam ainda melhores”, recorda Zé Coió.

Marão conta que também chegou a jogar como profissional, “mas não com tanta categoria quanto Zé Coió. Ele jogou muita bola, realmente era um jogador nato. Eu era meia direita, fiz estágio no Bahia e no Galícia, fiquei um período curto em ambos. Meu negócio mesmo sempre foi o futebol amador”, ressalta.

Rivalidade

Os jogos entre Argentinos e Boca Juniors lembravam as partidas entre os homônimos argentinos. “Não tinha jogo fácil, ninguém queria perder, ainda mais quando a gente via a torcida eufórica do lado de fora”, diz Zé Coió.

A partida mais marcante aconteceu em 1997. “Era um jogo como outro qualquer, ainda não estávamos na fase final. Os jogadores de ambas as equipes começaram a se estranhar desde o começo da partida”, lembra Marão.

Zé Coió diz que a confusão começou mesmo por conta de sua habilidade. “Eu era abusado, não deixava os zagueiros quietos. E isso irritava eles. Nesse dia, todos entramos em campo com os nervos à flor da pele”, diz.

Marão  completa que o clima esquentou quando os jogadores começaram dar entradas mais duras. “Até que começou um empurra, xingamento para todo lado. Foi uma briga generalizada, os jogadores da reserva entraram em campo e a confusão foi parar na delegacia”, relata o fundador do Argentinos, complementando que todos os jogadores prestaram depoimento e foram liberados.

Por outro lado, eles contam que o que chamava atenção mesmo neste clássico era a qualidade dos jogos. “Acho que eram os jogos que mais tinha público. O Boca, apesar de ser uma equipe jovem na época, já atraia muitos torcedores na Boca do Rio. Os jogos eram muito disputados e normalmente saiam muitos gols”, diz Marão.

Os gols, diga-se de passagem, ocorriam muito em função de Zé Coió, segundo ele mesmo conta, com orgulho. “Era um tempo bom. Apesar das brigas, a gente gostava mesmo era de jogar bola, de fazer gol. Se me deixasse de frente com o goleiro, era garantia de gol”, afirma, em tom nostálgico.

Partida do Campeonato da Boca do Rio, em 2014 . Marão e Zé Coió são atuantes na liga local (Foto: Leonardo Pastor)

Partida do Campeonato da Boca do Rio, em 2014 . Marão e Zé Coió são atuantes na liga local (Foto: Leonardo Pastor)

O Argentinos é o maior campeão da Boca do Rio, com 16 títulos. Já o Boca, em sua curta história, ganhou 2 títulos. “Aos poucos, as pessoas faram deixando de acompanhar as partidas, meus amigos foram deixando o time, e eu decidi parar também, estava cansado. Ninguém assumiu o time, então o Boca acabou”, resume Zé Coió sobre o fim da equipe que ele fundou.

Com o fim do Boca, o Real Brasil, a primeira equipe fundada na Boca do Rio, reassumiu o posto de principal rival do Argentinos no bairro. O Real tem 11 títulos locais.

“São tempos que não voltam mais. Naquele período, tínhamos um público imenso, o pessoal dava mais valor ao esporte, dava mais atenção. O público era realmente algo que incentivava. Hoje, o lazer das pessoas é outro e o futebol amador perdeu espaço”, relata Marão.

Passados mais de dez anos desde o fim do clássico Argentinos e Boca, os antes rivais e hoje amigos Marão e Zé Coió já não jogam mais futebol, mas lembram de cada detalhe dos jogos que marcaram suas vidas. “Enquanto tiver um garoto querendo jogar bola ou um torcedor querendo assistir a uma partida, então sabemos que o futebol não morreu. É uma paixão”, finaliza Coió.


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